
Há pouco tempo conversando com uma amiga, ela mencionou o fato de eu nunca ter tido um gato. Disse-lhe, que apesar de nunca ter tido um gato, eu nunca detestei gatos. Nunca orquestrei nenhuma cruzada solo ou acompanhado para atentados contra felinos, retirando sua água, comida e abrigo, muito menos fiz algum arremesso (não desse tipo) de veneno na calada da noite, pela janela.
Sempre considerei que assim como crianças, animais também precisam de considerável espaço para correr, pular, enfim, brincar como sua natureza determina.
Entretanto, quando, naquela noite extremamente fria, vi pela primeira vez aquela carinha, com aqueles olhinhos penosos, seu miado triste que ecoava e que parecia me dizer:
- Ei, fique comigo! - Sabia que nossos destinos se interligariam em caráter definitivo.
Refleti também ser um exagerado egoísmo de minha parte não permitir que minha esposa, realizasse seu sonho de ter um gatinho e a comunicação de que finalmente concordara com a presença de um animal de estimação entre nós, lhe provocou verdadeira comoção, deixando evidente, ser a maior emoção de sua vida.
O início e as surpresas
Após um estágio de trinta dias com a Myrna, ela veio para a nossa casa num fim de semana, ficando aos cuidados da Neide. Batizada pela Ana Clara, como Luna, devido a ligeira inclinação de suas patinhas dianteiras, que lhe dificultavam um andar reto, acrescentei-lhe o sobrenome, ficando, Luna de La Patita.
Lembro-me do primeiro dia que fiquei sozinho com ela. Era uma segunda-feira e doravante, os cuidados com a felina estariam sob minha responsabilidade. Logo pela manhã, estava descontraído próximo a pia quando senti uma mordidinha no meu pé.
Nada adaptado à nova realidade, dei um salto! Tentava entender o que poderia ter me mordido. Fosse o que fosse, era ligeiro, pois desaparecera imediatamente.
Sobressaltado iniciei automaticamente um diálogo comigo mesmo.
Parecia um gato? Como assim? Tem um gato aqui? Sim agora tem! Desde quando? Desde hoje...
Voltei ao estado normal e fui procurar o agressor e tentar iniciar com ele, digo, com ela, um relacionamento de paz, já que acabara de refletir que teríamos que conviver juntos.
Iniciou-se assim um período de intensa observação e aprendizado, onde atento a tudo que ela fazia, fui induzido a admirar como a vida se expressa, através de suas mais variadas formas.
Pensava como um animalzinho sem ter tido nenhuma orientação, principalmente sem ter tido o necessário contato materno, conseguia estabelecer por si só, um padrão de vida?
Como sem a efetiva ajuda que todos nós humanos somos dependentes na fase da infância, eles, guiados apenas por um aparente instinto, se comportam de forma tão peculiar e característica à espécie? Certamente, projetada pela complexidade do fantástico DNA.
No início sempre que a necessidade a levava a caixa de areia, ela fazia o que tinha que ser feito num local e na instintiva intenção de cobrir o feito, por absoluta falta de experiencia, atirava toda a areia para o lado oposto. Mas logo conseguiu conciliar essa questão, fazendo o que tinha que ser feito num local e cobrindo-o no mesmo lugar, sem exportar areia para nenhuma outra área.
Certa ocasião, após notar certo silêncio, fui procurá-la e não a vi por canto algum. Decidi sentar-me no sofá para analisar por onde deveria iniciar a busca. Um fino miado saiu de baixo da manta do sofá. Com sua pelagem predominantemente branca se camuflara por baixo do branco do forro e eu quase sentara sobre ela.
Outra vez, após lhe dar água na seringa, não a vi por perto, mas como sabia que não poderia ter ido longe, fiquei tranquilo. Decidi ir à cozinha e senti um fraco miado.
Sim, um miado? E parecia vir de mim? Como assim? O que estava acontecendo?
Ao colocar a mão no bolso do roupão, lá estava a origem. Lá estava ela, certamente, nada satisfeita com os solavancos dos meus passos, transportando-a, contra sua vontade, num dos meus bolsos.
Os Sustos
Durante seu período de exploração ambiental, num dos primeiros saltos, alcançou com sucesso certa altura da cortina, mas logo descobriu que não sabia descer e usou seu tradicional pedido de socorro.
Nesse mesmo período, brincando com umas cordinhas, começou a emitir seu miado de socorro e corri para atendê-la e diante da cena, peguei uma tesoura para livrar suas patinhas das cordas que lhe envolvera, deixando-a imobilizada.
Mais o susto maior ainda estaria por vir. Enquanto almoçava notei seu olhar fixo em mim, olhei para um lado e para o outro e quando a olhei novamente, lá estava aquele olhar penetrante e fixo e agora suas mandíbulas tremiam freneticamente, pareciam descontroladas.
Eu olhava e ela mantinha o olhar fixo em mim, imobilizada como uma estátua.
Disfarcei, olhei de novo e a cena era a mesma, aquele incomodo olhar, seguido por um estranho movimento frenético de suas mandíbulas descontroladas.
Sempre que levava o garfo à boca, a olhava discretamente e seu olhar fixo, acompanhado por assustador movimento labial, emitia um som característico, nada comum. Seu queixo parecia que ia se soltar a qualquer momento e o olhar, parecia pretender me hipnotizar. Interrompi a comida apressado. Fosse o que fosse, parecia muito sério e exigia uma atitude!
- Meu Deus! O que pode ser isto?! Será uma falha na Matrix? Lembro de ter lido alguma coisa sobre isso em algum lugar... E se for mesmo uma falha, como desligo?!
Corri para o Oráculo moderno e no Google, iniciei uma rápida pesquisa, logo me deparando com uma chamada:
Como se aproximar do seu Gato.
-- Aproximar? Eu estou querendo fugir dele...
Logo abaixo estava o que eu realmente precisava,
“Este movimento acompanhado de um som característico emitido pelo gato é muito comum quando estão prestes a caçar. Segundo pesquisadores, esse som é produzido devido a um sentimento de frustração por não conseguir alcançar a presa...”
- Há! Agora Sim! Entendi!
Respirei mais calmo e retornei ao almoço. Ela não estava mais na posição original, mas ao levar o garfo à boca, ele voou da minha mão e quase engasgo ao refletir:
- Mas, nesse caso, a Presa sou eu!!!
- Meu Deus, onde ela está? Talvez esteja preparando um ataque surpresa sobre minhas costas. Fui calmamente pelos cantos e finalmente a encontrei esparramada pelo sofá num daqueles seus intermináveis cochilos. Concluí não haver mais perigo. Para mim, é claro!
As Placas
A partir daí, por observar seus lugares preferidos para cochilos, fui obrigado a criar algumas placas informativas... Para o caso de ser procurado em momentos que por motivos alheios a minha vontade, não seria possível atender.
Quando ia até a cozinha e voltava para prosseguir o trabalho e a encontrava sobre a cadeira onde eu deveria sentar, eu colocava a placa:
“Volto daqui a pouco”
Quando na volta ela continuava, ainda mais esparramada, substituía a placa anterior por:
“Volto quando for possível”
E quanto observava o seu cochilo delicioso na minha cadeira, a placa era:
“Serviço interrompido por tempo indeterminado”.
Às vezes, ela subia na mesa e se posicionava justamente em frente ao monitor ocupando praticamente toda a tela. Para essa ocasião, a placa era:
“Serviço fora do ar, sem previsão de retorno”.
Essas placas me levaram a confeccionar também um pequeno manual com alguns importantes itens:
1. Nunca acorde um gato;
2. Nunca o remova de onde estiver, principalmente, se ele estiver esparramado na sua cadeira;
3. Se ele sumir, antes de iniciar a procura, verifique seus bolsos;
4. Cuidado! Não sente no sofá sem antes verificar cuidadosamente seu forro;
5. Não se assuste e aja naturalmente se o tapete do banheiro vir correndo e der um salto nas suas pernas.
Vício na Alimentação
Acostumei-me com o som encantador dos “crek-crek” dos seus dentinhos triturando a ração. Nessas ocasiões, passei a acariciá-la e não demorou muito para que ela logo assimilasse e às vezes que ia até o pote, parava, me olhava como se dissesse:
- Faz aí... – e eu acariciava sua cabeça e ela começava a comer.
Comia um pouco e me olhava e eu repetia o carinho na sua cabeça, mais um pouco e me olhava novamente e eu seguia o roteiro. O Looping só era encerrado quando finalmente ela enchia a barriguinha e a partir daí meus carinhos tornavam-se desnecessários.
O Ronronar
Logo daria início uma interação que me tornaria refém. Sabe aqueles pequenos blocos coloridos que usamos para pequenas anotações? Com eles passei a confeccionar pequenas bolinhas e atirava em sua direção e ela fazia disso a coisa mais interessante da vida. Corria de um lado para outro para alcançá-la, enquanto emitia seu ronronar, o som que Amara Antara afirma ser capaz de curar!
Independentemente, desta análise filosófica, a verdade é que esse rom-rom parece um Mantra que se não for capaz de realizar uma cura, com certeza é capaz de causar uma grande satisfação e alegria nos envolvidos.
Passei a ser surpreendido quando estava no Computador, concentrado em alguma tarefa e sentia suas patinhas apoiando-se nas minhas costas e batendo levemente e como minha perspicácia não é tão apurada quanto a dela, somente após a terceira vez foi que consegui decodificar aquele ato, como:
- Ei, tá na hora do arremesso, esqueceu...?
- Há Sim, Dona da Pata, desculpe, estava entretido...
Sem contar quando a notava sentadinha na sala, no braço do sofá, olhando-me fixamente e quando finalmente nossos olhares se cruzavam, parecia aborrecida e expressar:
- Francamente, como esquece o compromisso, esse desmiolado...
Ela iniciava o seu exercício, se alongando no seu arranhador e quanto julgava pronta, se posicionava e começávamos, com certo atraso, os curtos, médios e longo arremessos.
De tanto contato com essa atividade dos arremessos de bolinhas, certa noite sonhei que estava numa guerra. Sim, numa guerra e eu era o Comandante responsável pela artilharia. Ao meu comando um grupo de soldados atirava contra o inimigo. Todas as munições consistiam em bolinhas coloridas de papel.
Quando disparadas, o front adversário corria de um lado a outro e ronronavam de satisfação. Vibravam e mais bolinhas, verde, amarela, azul, branca, preta, enfim, eram alvejadas e assim uma chuva de bolinhas sob suas cabeças prosseguia por tempo indeterminado, sem que ninguém questionasse ou reivindicasse território, poder político ou conceitos religiosos.
Ao acordar, diante de um mundo de difícil convivência, restava a minha adorável “guerra contra Luna” e em determinado momento, eu me via devassado de bolinhas e logo iniciava, imediatamente, outra confecção de nova artilharia.
Às vezes, ela ficava paradinha me observando. Na realidade, esperando o arremesso. Quando o arremesso não era como ela gostaria, ela apenas acompanhava com o olhar e certamente, me recriminando:
- Não é nada disso!
Nova bolinha era arremessada e quando eu ainda não conseguia atingir o ângulo que ela esperava, o olhar parecia afirmar:
- Francamente Humano, não consegue acertar uma mísera bolinha...
Eu preparava novamente a artilharia e desta vez, com todo o capricho e apreensão pelo olhar reprovador, atirava. Arremesso realizado com sucesso!
Antes de dar a partida para a bolinha. Havia um delay. Ela rebolava ligeiramente o bumbum, numa imagem envolvente e então partia com a velocidade de um raio na direção da bolinha, ao som do seu incomparável “rom-rom”.
Recentemente a amiga que cuida da limpeza da casa, iniciou sua tarefa e quando a vi com o saco plástico cheio de bolinhas nas mãos, reunidas dos mais variados pontos da casa, temendo que ela as conduzisse ao lixo, senti um arrepio. Lembrei imediatamente de Carol Guimarães e senti vontade de tomar o pote de suas mãos e dizer em bom som.
“Com Licença que isto é da Gata!” - Respirei fundo e contive-me.
Sou fissurado por alguns temas, tais como Xadrez, Filosofia, Ufologia, Religião e principalmente sobre os Mistérios que envolvem a existência e diante daquela questão transcendente que envolve a todos.
Quem somos?
De onde viemos?
Para onde vamos?
Pelo menos no meu caso, acredito já ter sido resolvida.
Quem sou?
Sou um arremessador de bolinhas...
De Onde venho?
Venho do quarto, da sala, da cozinha. Acabo de me levantar com dificuldade e muito cuidado de baixo de uma mesa de vidro na sala...
Para onde vou?
Com licença, vou continuar arremessando minhas bolinhas!